Embalada pela última partida em que venceu o combinado de Piramboia pelo score de 7 x 4 fora de casa, a equipe do Sem Recurso FC não esperou muito e já entrou em campo no último domingo em partida válida pelo calendário caipira de futebol varzeano. O oponente foi o Baldi FC, equipe já enfrentada em outras oportunidades em campos de grande infraestrutura como a Associação Desportiva da Policia Militar (APDM) e a extinta Arena Kopenhagen (campo da Caio).
Esses locais são preparados para receber os atletas e contam com equipamentos como vasto vestiário, pontos de hidratação, banco de reservas coberto, proteção aramada para torcedores, estacionamento para ambas as equipes e torcida, iluminação de LED, sistema de drenagem linfática, redes de fios egípcios nos gols e demarcação de linhas com cal proveniente de jazidas minerais ecofriendly. Antes da extinção e despejo do Sem Recurso, a Arena Kopenhagen iria receber gramado 91% sintético.
O presidente do Sem Recurso FC Daniel Toledo, entusiasta do jogo raiz e da várzea em seu estado mais crú e bruto estava insatisfeito com o requintado e luxuoso caminho que a equipe estava se acostumando, em jogos com demasiada estrutura e conforto. Decidiu então que marcasse uma partida no conhecido Campo do Rodo, a origem de tantos e tantos pernas de pau botucatuenses, linhagem de jogadores passada de geração em geração neste simbólico campo de futebol. Alí caro leitor, é onde se respira a verdadeira várzea.
Localizado na entrada sudeste de Botucatu, o campo fica no início da Rua Amando de Barros, próximo ao Tiro de Guerra. Está numa baixada onde passa o Rio Lavapés, popularmente conhecido como Rio Bosteiro* devido a fragrância tradicionalmente sentida. Como não possui grades ao redor do campo, caso um atleta chute a gol e caso esse chute não acerte o gol, o que é muito comum, a bola cai no rio e segue viagem. Isso acontece também em uma das laterais. É preciso folego pra descer o barranco e não deixar a água levar a bola embora. O gramado não é cortado e sobrevive por conta própria, contendo partes de altos tufos de erva daninha e também brejos de profundidades rasas. No meio campo não há grama, assim como dentro das duas pequenas áreas. Para ser honesto, em um lado há demarcação de linha lateral do começo ao fim, porém um trecho a linha branca acompanha o desnível de terreno e sobe o barranco de acesso ao campo, ficando 30 cm acima do restante do gramado. Ou seja, quando o lateral sobe pro ataque, ele sobe literalmente. Para os atletas que ficam no banco de reservas existem duas opções: permanecer de pé na calçada ao lado do vendedor de caldo de cana ou atravessar todo o campo e ficar debaixo da árvore num tronco caído entre o brejo e o rio. Não há vestiário, não há bebedouro e as redes dos gols estão furadas.
O clima estava chuvoso, o que tornou as coisas ainda...melhores! Futebol raiz puro, não poderia ser melhor. Faltou apenas a invasão de um bêbado ou cachorro.
Para este dia o notável técnico Fer Véio formou o time com ET; Caio Arruda, Beto, Diogo e Pelé Branco; Maffia, Barduco, Flávio Pires e Cegão, Afonso e Tiago Donini. Sentados no tronco da arvore caída estavam Yuri, Thales, Daniel Saidera e Jorge. Compareceram para dar apoio os lesionados Felipe, Bunda e Coelho. Fer fez alterações na equipe colocando Caio Arruda na lateral e Cegão na meiuca. A polêmica ficou com a escalação do contratado extra Diogo, em sua primeira partida pelo Sem Recurso como titular, deixando Daniel e Thales na espera.
Jogando um balde de água fria em todo esse ambiente rústico de jogo varzeano, o arqueiro pé de pano ET gritou para vários jogadores “alguém trouxe protetor solar?” Pode se ouvir dois respondendo que “não” e outro que gritou “ah vá cagar ET”.
A partida:
O Sem Recurso aprendeu a tocar a bola! O Sem Recurso aprendeu a ter paciência para atacar! O Sem Recurso aprendeu a fazer triangulações! E agora está colhendo os resultados. Fez uma excelente partida dominando a equipe do Baldi FC em grande parte do jogo. Sofria investidas, é claro, mas estava sempre bem postado com Beto e o seguro e excelente zagueiro Diogo. Caio como lateral acabou preso na zaga e pouco conseguiu ir ao ataque, exceto por uma única vez quando iria se aproximar a área adversária e o juiz apitou final de tempo. Os volantes fecharam as portas com auxílio dos meias, fazendo uma marcação mais recuada.
Apesar de toda essa preparação, quem fez o primeiro gol da partida foi o Baldi, em lance de desentrosamento entre o guarda redes bronzeado ET e o novato zagueiro Diogo. Em cruzamento na altura da cintura, Diogo estranhamente não se movimentou e deixou a jogada proceder, enquanto ET mais parado que uma estátua nada fez para sair do gol e isso foi tudo o que o atacante adversário precisava para empurrar pra dentro. Indagado no intervalo o porquê de se comportar como uma múmia paralitica, o zagueiro disse que esperava que o goleiro fosse sair do gol evitando o cruzamento. Este blog isenta ET e Diogo da culpa e põe este gol na conta do professor Fer.
Pelé Branco que é um jogador de muita habilidade deu um chapéu incrível no meio campo e em longo cruzamento para dentro da pequena área, encontra o avançado Afongol que subiu esquisito e fez um estranhíssimo gol de garganta, a bola pegando bem no pomo de Adão. O que importa é que a bola entrou e o empate foi alcançado! 1 x 1
O novo artilheiro do Sem Recurso Tiago Donini está fedendo gol. Precisa de poucos lances para por pra dentro e assim o fez. Em lance pelo lado esquerdo, deu um fantástico chute no canto oposto, chute forte, certeiro, nas bochechas das redes furadas. Puta que pariu que gol de quem conhece! A moral dele cresceu demais nos últimos jogos e com esse gol se colocou como um dos maiores atacantes da equipe. Mas como nada é perfeito, perdeu na sequencia um gol inacreditável. Foi lançado sozinho cara a cara com o goleiro bem de longe. Percorreu grande distância, chegou defronte ao adversário e executou um miserável chute na orelha da bola, saindo 1 metro do gol pra fora. Que chance perdida Tiagão!!!
E quem não faz, toma. O Baldi FC conseguiu o empate em 2 x 2 em cruzamento e finalização de cabeça. Mas o placar não assustou a equipe, que continuou com a mesma determinação e concentração. As chances de perigo hora ou outra apareciam tanto de um lado como de outro, e ET ainda deu sorte pela trave o salvar em um lance rápido de ataque.
Esta bola que acertou a trave veio de um forte chute e como já era de se esperar, desceu até o rio e foi embora. O vultuoso goleiro Yuri estava nas proximidades e rapidamente foi ao resgate: desceu o barranco e salvou a bola na agua, porém não raciocinou que seu leve corpo de 14 arrobas teria dificuldade em retornar ao campo. Gritou algumas vezes por ajuda, chegando até a fazer sinal de SOS no chão com gravetos. O goleiro reserva adversário foi solidário e guinchou Yuri M1to lá debaixo do córrego.
Rafael Barduco, o pitbull Felipe Mello da Cuesta, também se safou de se machucar no campo do Rodo, pois em jogada de raça na linha lateral, se jogou para evitar que a bola saísse e deu um chutão pra frente. Ao cair ao solo com seu corpo de formato de barril de chopp 5L, passou raspando de uma pilha de 6 tijolos que algum lazarento montou para sentar e assistir a partida. Foi por pouco e o atleta só deve estar sabendo do ocorrido por esta publicação. Fica a nota de que o pulo foi totalmente desnecessário pois ele estava sozinho e o chutão que desferiu não serviu pra bosta nenhuma.
Outro lance que vale o comentário é a repetição de uma tradição na maioria dos jogos: o quase golaço de Maffia, chegando agora em sua quarta edição. Como um urubu filhote que fica de longe da carniça esperando ver se sobra alguma coisa a seu favor, o volante se posicionou fora da área em jogada de escanteio, aguardando rebote. E o rebote veio mesmo, com a pelota quicando, pedindo o chute a gol. Este atleta acerta com veneno de trivela e dessa vez parecia que sairia o sonhado gol, pois foi um chutaço mesmo! Infelizmente a saga persiste pois a bola acertou as árvores e foi só.
Antes do primeiro tempo acabar, o meia Flávio Pires colocou o Sem Recurso na vantagem do placar em forte chute de fora da área, que resvalou na anca do zagueiro, fez curva elíptica e entrou no ângulo! Um belo gol! 3 x 2 pro Sem Recurso.
No intervalo de jogo o professor Fer Véio manteve a mesma equipe que havia terminado o primeiro tempo. Nessa altura do jogo todos os atletas já haviam entrado em algum momento da partida, e o personagem do segundo tempo foi o menino sapeca Thales, o homem da balada, o atleta que muitas vezes chega pro jogo direto da noitada. Destaque pois saiu de seus ágeis pés o quarto gol do Sem Recurso ao ser lançado em velocidade, finalizando com simplicidade e eficácia, sem chances para o goleiro que rebocou Yuri. 4 x 2.
Destaque também por que foi protagonista do lance MA DEI RÃO da partida. Posicionado como volante pelo técnico Fer Véio, além das qualidades ofensivas Thales faz muito bem a função defensiva com muita correria e marcação, e quando necessário faz o trabalho sujo, jogando de cara fechada e sem se importar em dar chutão pra afastar o perigo. Em um momento de pressão da equipe do Baldi, Thales desafoga a defesa semrecursense antecipando um passe ao armador e da uma bica afastando o perigo que rondava. Mas foi uma bica daquelas, a bola voa a 10 metros de altura, passa pela linha lateral e acerta o paredão cheio de janelas, uma construção assemelhando um prédio que margeia o campo do Rodo. Por 4 centímetros Thales não quebra os vitrais austríacos que ali estavam além de um singelo vaso de 20 kg que fica exposto a luz solar. Foi por pouco.
A equipe do Baldi FC pareceu sentir o golpe e não teve mais capacidade para reverter a diferença no placar. O jogo terminou as exatas 11h00 da manhã.
Os atletas novamente comemoraram muito a vitória consecutiva, após meses a fio sem sair no positivo. Repetiram a dose e levantaram o professor Fer Véio, grande líder desta caminhada de sucesso. Ficou descontextualizada a cerveja longneck Stella Artois saboreada ao final da partida, pois por estar no Campo do Rodo deveria ser Sub Zero e olhe lá.
Nota de roda pé 1: a Prefeitura de Botucatu vem trabalhando nos últimos anos para revitalizar o rio Lavapés.
Nota de roda pé 2: na noite deste mesmo domingo Botucatu sofreu fortes chuvas, causando enormes estragos em toda a cidade. O Campo do Rodo foi parcialmente destruído.